quinta-feira, 20 de março de 2008

O Mistério do Acampamento


Todo acampamento é a mesma função: procura barraca, enche a bolsa térmica, carrega a lanterna e se compra muita comida para passar longe da vida contemporânea por alguns dias. Para os homens, o acampamento é uma forma de liberdade. Suas barracas são reflexos de suas atitudes; desorganizadas, cheias de barro e repletas de bolachinhas recheadas, chips de bacon e, claro, preservativos. Já as barracas femininas são bem ajeitadinhas – ao menos na teoria, mas há exceções – praticamente um self-service. Cheias de travesseiros, colchões infláveis, repelentes e até de bolsas de maquiagem. Maquiagem, em pleno acampamento! Humpf! Há muitas diferenças entre as duas espécies, mas uma coisa é certa: acampamentos são lugares perfeitos para viver histórias inéditas, dignas de um bom livro para orgulhar nossos filhos e netos.

Chega a Páscoa e a história se repete todos os anos, ininterruptos, desde o 2° ano do Ensino Médio. A Turma da Mariana se manda para o Forte Santa Teresa, há 30 km de distância do Chuy, para acampar. São mais de 15 pessoas e a cada ano sempre aparece uma figurinha diferente para somar-se a turma. No ano passado, aconteceu a pior e a melhor história de todos os tempos. Para a sorte de Mariana e de outros 14 adolescentes, os protagonistas da história não foram as figurinhas batidas da turma e sim os três novos da turma: Kaká, Gustavo e o Leonardo, mais conhecido por Léozinho, o mais velho e o mais mirrado da turma, por isso o apelido no diminutivo.

Depois do término do colégio cada um seguiu para um canto. Uns ainda estão pelo cursinho tentando vestibular para Medicina; outros já estão quase se formando, no último ano de faculdade, mesmo assim, não perdem a oportunidade de estarem reunidos, todos os anos, no acampamento anual da turma. A Mariana é a organizadora desde a primeira excursão, pois nenhum deles ainda tinha idade suficiente para tirar a carteira de motorista e irem de carro para o Forte. Dois meses antes, ainda verão, já fazia os contatos com alguma van disponível no feriado de Páscoa. Ano passado foi por pouco. Na última tentativa, conseguiu a van do Seu Medina. A única com a data livre. Era a verdadeira Relações Públicas, tudo era resolvido por ela. Ela organizava, ela falava, ela manda calar. Ela fazia tudo, por isso, ninguém se preocupava com nada, muito menos em cuidar das barracas.

Dia de partida, a van superlotada com tantas barracas, malas e bolsas térmicas. A Turma da Mariana ia a excursão toda fazendo festa, tomando cerveja e cantando aquelas famosas músicas de viagem de turma. Mas havia três novos integrantes. Motivo para? Para? Trote nos bixos da Turma! Não tiveram piedade do trio. Cacá teve o rosto pintado por batom vermelho e teve que usar uma peruca de palhaço; Gustavo, além da maquiagem no rosto, teve que usar um vestido florido cheio de furos e o Léozinho, bem, o Léozinho foi o mais afetado: ele teve que ir sentado ao lado do Seu Medina, excluído da festinha na van que a turma aprontava. Tudo culpa do sorteio de papéis dobrados feito com o boné do Arthur, organizado pela Dona Mariana.

De Rio Grande até o Forte Santa Teresa seriam cerca de 290 km, coisa de quatro horas de viagem, um pouco mais ou um pouco menos. Mas ninguém esperava que o Seu Medina soubesse um atalho. Sim, um atalho para chegar ao Forte mais rapidamente, economizando coisa de 50 km, ganho de tempo e ganho de gasolina.

- Pessoal, silêncio por favor! – e nada da Turma ficar quieta. Insistiria novamente:

- Atenção, silêncio por favor! – e nada novamente até que o Seu Medina, ainda paciente, resolveu parar a van no acostamento, apagar o som e pedir novamente silêncio:

- Por que parou? Parou por quê? – cantarolava a galera batendo com as mãos no teto da van.
- Seu Medina, o que houve? – questionou Mariana.
- Ufa, me escutaram! Mariana, eu conheço um caminho alternativo para chegar ao Forte!
- E tem condições de ir tranqüilo? Não é ruim, não?
- Não! A estrada é boa e depois é areia, é uma praia!
- É pela Praia do Hermenegildo?
- Isso, vamos ou não vamos? Economizaremos 50 km! Tempo e dinheiro!

Mariana virou-se para a Turma e perguntou o que todos achariam melhor, se ir pelo caminho tradicional ou investir no caminho alternativo que o Seu Medina lhes propunha. Depois de uma votação vencida pelo caminho alternativo por 14 a 3, Mariana comunicou a decisão:

- É pelo seu caminho, Seu Medina!
- E lá vamos nós!
– confirmou o Seu Medina, trajando uma clássica camiseta do Caxias, de 2000.

A van ligou, primeira, segunda, terceira e perdeu força. Seria um sinal? O pessoal nem percebeu, o som já estava a milaço rolando um “Toda vez que eu chego em casa, a barata da vizinha “tá” na minha cama, diz aí Rafinha o que você vai fazer? (...)”. No embalo, o motorista ligou e seguiu na estrada. Já eram quase 19h, a tarde já se ia e o céu já estava escuro, o suficiente para se ligar as luzes da van. Farol dianteiro esquerdo queimado! Mas como? O Seu Medina sempre fazia a checagem e manutenção da van, a van era como uma filha para ele. Mesmo assim, seguiu caminho. Percorreu mais uns 70 km com o farol caolho e a van se comportava direitinho. Duas horas e meia depois finalmente chegariam a entrada de Hermenegildo.

Freia, reduz e pisca direito para o acostamento. Desmancha, pisca esquerdo, primeira marcha, segunda, terceira e...

- Ô motora! Falta muito para chegar? – gritava o Rafinha lá do fundo da van.
- Falta uns 80 km agora, coisa pouca!

A viagem seguia, céu escuro, escurinho. A noite já havia chegado. As luzes daquela estrada vinham das estrelas que tumultuavam o céu de tantas, ofuscadas apelas pela lua cheia que deslumbrava a Mariana, a Raquel, a Jú, a Julianinha e outras amigas que colavam os rostos no vidro para apreciar aquela linda fotografia. Enquanto os guris estavam no papo solto falando de futebol e das rodadas iniciais do Gaúchão. Nenhuma guria se interessava por futebol, a única guria que estava lá, ou melhor, o guri, era o Gustavo que ainda trajava o vestido florido cheio de furos. Decerto, havia entrado na brincadeira.

- O que houve? Por que parou motora? – perguntou a Flavinha.
- Se essa porra não virar, olê olê olá, eu chego lá! – entoou a gang masculina do fundão.
- Quer que os guris empurrem, Seu Medina? – solucionou Mariana.
- Xiii, eu acho que a gente vai ficar por aqui mesmo... – adivinhou Carol.

E nada da van ligar. Nada do Seu Medina falar. Simplesmente silêncio. Nem o Léozinho que estava trajado de mulher falava alguma coisa. O canto no fundo da van cessaria. Ninguém comentaria mais nada. O Seu Medina apreensivo com aquela situação, afinal já estavam na praia, no caminho alternativo que tanto conhecera. O problema não era nem a van, muito menos o tempo de viagem já que haviam saído um dia antes. O problema era o mar. A van estava muito próxima do mar ou o mar próximo da van. A maré sobe de três em três horas, isso é lei. Problema maior ainda seria dirigir à noite em uma praia sem civilização próxima para pedir ajuda. Muito menos um guincho. Celular? Necas de pitibiriba! Nada de redes disponíveis, por conseqüência, nada de ligações. A solução seria ficar ali mesmo, ao menos por aquela noite.

- Pessoal! Sinto informar, mas a van morreu e vamos ter que ficar por aqui esta noite!
- Mas como assim “morreu”, Seu Medina? Não tem jeito, não?
- Posso até dar uma olhada, mas é muito difícil arrumar! Ela é toda eletrônica, se fosse a minha antiga eu até saberia qual o problema e tentaria dar um jeito.
- Não tem solução mesmo?
– perguntou Mariana.
- Nenhuminha. Vamos ter que ficar por aqui mesmo.

Depois da decisão, todos desceram da van e foram ajudar a empurrar. Até as mulheres! Mariana, Raquel, Cacá, Jú, Julinha, Flavinha, todas as “inhas” e todos da gang do fundão, inclusive o Gustavo, apelidado de “Rita Cadillac” pelo vestido. Ao toque de três segundos ditados pelo Medina, empurrariam a van para mais longe do mar possível, evitando que o mar sugasse a van ou a fizesse atolar de vez na beira da praia, assim como acontecera com um amigo meu que atolou no lodo da Praia do Cassino junto com a namorada, por teimar em dirigir à noite na praia.

Uns sessenta passos do mar. Foi o máximo que a Turma da Mariana conseguiu, porque as dunas móveis formadas pelo forte vento sul da costa não permitiriam que a van avançasse muito em direção às dunas. O jeito foi arriscar. Barracas sendo montadas, malas desarrumadas, bolsas descarregadas. Enquanto o Seu Medina, com o óculos na ponta do nariz, tentava achar o problema do motor da van com a ajuda do Leózinho, o seu co-piloto.

Cerca de quase 2h da manhã e as barracas finalmente ficaram prontas, montadinhas. A Turma da Mariana não tinha nem mais vontade de cantar. Um bom sono seria o prato principal, já que não haviam comido nada além das comuns porcarias que se come em viagens de amigos. Uma barraca ao lado da outra, em fila indiana. Nove barracas. Dois, três em cada. Sem misturas, mulher com mulher, homem com homem. Apenas uma com uma pessoa apenas: a barraca do Gustavo. Não havia namorados, todos amigos, talvez um ou dois amigos coloridos.

- Boa noite, pessoal! Desculpem por essa situação! – gritou o Medina lá da van.
- Boa noite, bom dia, bom dia, boa noite... – responderam aqueles que ainda estavam acordados.

Nove barracas e uma van abandonadas no meio de uma praia deserta, sem nenhuma alma viva. Sem luzes artificiais de casas, sem carros ou caminhões passando. Nada. A única luz ligada era o celular do Gustavo e a do celular rosinha da Cacá. Amigos coloridos? Talvez se tornassem coloridos. Nas horas mais aleatórias é que as coisas acontecem. Mas o foco não foi esse. Depois de uma hora e meia de trocas de mensagens, deram-se boa noite e foram dormir. Cada um na sua barraca. Talvez acontecesse mais tarde, no Forte Santa Teresa, quem sabe.

O Gustavo dormiu rapidamente depois da última mensagem. Colocou o celular no silencioso e dormiu o sono dos Deuses. A Cacá ficara olhando para o céu, através de uma abertura com telinha do lado direito da barraca. Talvez imaginando algum possível envolvimento, mas certamente estaria apreensiva com aquela situação de falta de comunicação total com o mundo em uma praia. Bocejos e nada do sono vir. Virava para um lado, virava para o outro. Nada. Ajeitava o travesseiro, colocava a mão embaixo dele, salivava, respirava fundo e nada. Era desconfortável para ela, além do rosto ainda com vestígios de batom vermelho, o desconforto era maior, pois era o seu primeiro acampamento.

Finalmente havia pegado no sono, um sono leve, mas suficiente para descansar. Que nada! Nem cinco minutos e estava acordada. “Mas o quê era aquilo?”perguntava-se interiormente. “Eu vi, eu vi, não era sonho”respondia. Era um vulto, um vulto negro, grande. Uma sombra, mas quem seria? O Gustavo vigiando sua barraca? O Léozinho tentando fazer uma brincadeirinha? Não, não. Todos estavam deitados e a sombra era muito maior, não tinha a silhueta de uma pessoa. “Ai meu Deus!”suspirava de medo. “Vou virar para o lado, contar até vinte respirando fundo e dormir”e isso resolveu.

Nem vinte minutos depois e um barulho na areia. O colchão de ar dentro da barraca havia vibrado, sentido aquele barulho vindo da areia. Não eram passos normais de gente ou corridas de alguém. Pela telinha da barraca Cacá olhou e viu que todas as barracas estavam normais, não havia ninguém acordado caminhando pelo lugar, nem o Seu Medina que dormiria na van. Por que ela havia escolhido ficar logo na ponta? Oito barracas à sua esquerda. “Bem que eu poderia ter ficado no meio!” – pensava. Mas que barulho seria aquele? Antes a sombra e os vultos e agora o barulho. “Será que os outros também escutaram ou só eu escutei isso?”pensava Cacá, tremelicando por deveras.

O céu estrelado, estrelado. Parecia um protetor de tela do Windows, cheinho de estrelas fazendo companhia à lua cheia. Linda lua. Quando menos esperava, deitada de barriga para cima, com a cabeça um pouco virada para a direita, tapada até a altura da barriga, vira mais uma vez a sombra para lá e para cá – desta vez, bem devagarzinho. O barulho do à beira-mar ajudava a dar mais emoção, levava mais medo para Cacá. A silhueta ia e vinha, gerada pela luz natural das estrelas e da lua. Cacá não conseguia nem se mexer de tanto medo. Podia ser um assaltante ou um estuprador. Mas logo ali naquela praia desértica? “Já sei, vou pegar a minha lanterna, contar até dez e vou sair correndo!”planejava e ainda: “Vou gritar para acordar todo mundo, ao menos eu não fico sozinha e com medo”.

Sentou na barraca, com as pernas cruzadas, e abriu a bolsa bem devagarzinho. A sombra da incógnita ainda estava ali refletida no plano da barraca. Aos poucos estava sumindo, mas ainda estava ali. Abriu o zíper da bolsa, silenciosamente, e pegou a lanterna. Tremelicava como se estivesse com o corpo tomado de stress. Respirou fundo. E de novo. Pensou mais uma vez, olhou para o lado e viu a sombra ainda visível à sua direita. Sabia o que era uma pessoa de formas normais. O quê seria? Respirou mais uma vez – desta vez, mais fundo ainda. Abriu o zíper da porta de pano barraca e uma puxada. Levantou-se num pulo só com a lanterna ligada e saiu gritando:

- Socorro! Socorro! Acorda pessoal! Acorda Pessoal! Tem alguma coisa estranha aqui! – mirando e batendo a lanterna nas barracas.
- Cacá, o que foi? Que berreiro é esse? – perguntou o Gustavo com uma cara amarrotada de sono e emporcalhada de batom.
- Eu vi uma coisa muito estranha! Um vulto muito rápido e depois uma sombra, uma sombra e um barulho como se ela estivesse perto da minha barraca!
- E para onde foi?
- Eu acho que foi para trás das dunas!
- Vamos chamar todo o pessoal para ir ver. É melhor todos irem juntos do que só nós dois.

No meio tempo do diálogo entre os dois, todos já estavam de prontidão cercando a Cacá que soluçava de medo e engolia o choro para os amigos não notarem seu desespero. Rafinha, Léozinho, Arthur, Tales, Teco e até o Seu Medina já estavam por perto. A única a ficar dormindo foi Mariana, que dormira com os fones de ouvido e não escutara nada além da música. Todas as outras amigas já estavam ali. Eram 15, incluindo o Medina, exceto a preguiçosa da Mariana.

- Pessoal, seja o que for vamos lá! Cacá me dá a tua lanterna, eu vou à frente de todos vocês. Venham atrás de mim, pé por pé, não façam barulho! – ordenava o motorista.

15 pessoas para descobrir o que seria aquela sombra. Um perigo, uma incógnita naquela praia deserta. As gurias de camisola, os guris de bermuda e outros de cueca. O Seu Medina de óculos na ponta do nariz, trajando um calçãozinho branco de futebol e a inseparável camisa do Caxias, Campeão Gaúcho de 2000. Foram em direção à duna, pé por pé. De repente, um espirro. Era o Rafinha. “Shiiiiiiiiiiiu!”pedia silêncio o homem da lanterna. Seguiam juntos, sestrosos, com medo do desconhecido, normal, extremamente racional.

Aproximando-se da duna e resolveram fazer a volta, mas com dois grupos mistos de sete. Um grupo iria pela esquerda o outro pela direita, encontrando-se no outro lado da duna, enquanto o Seu Medina iria subir a duna em direção norte para ver lá de cima o que seria a tal sombra, o vulto visto por Cacá. Aos poucos os grupos foram caminhando, enfiando os pés na areia fofa da duna. Circundaram a duna e encontraram-se do outro lado, não havia nada. Mas quando olharam para cima da duna, avistaram o Medina, bom gaúcho que é, empunhando a lanterna na mão esquerda e gesticulando com a direita enquanto desvendava o mistério do vulto barulhento:

- Pessoal, é uma vaca! Olhem, é bem mansinha a queridona!

A viagem da Turma da Mariana rumou no outro dia para o Forte Santa Teresa após a van ter sido resgatada pelo guincho e consertada numa oficina no fundo de um Posto de Gasolina, na entrada do Chuy. A Mariana também havia voltado do sono, ou melhor, ao comando. Os amigos viveram uma história para contar aos netos. Aprenderam que o trabalho em grupo e a confiança são tão importantes quanto confiar em si para enfrentar um desafio. E que os atalhos nem sempre são tão bons quanto o caminho correto. E mesmo com os problemas, nas andanças de erros e acertos, viveram uma aventura digna de um livro, coisa bem melhor do que ovos de chocolate. De presente, ainda conheceram uma vaca barulhenta, que veio a ser apelidada, carinhosamente, é claro, de Cacá.

Um comentário:

Unknown disse...

Fala negão! Hehehe! A cada dia que passa teu potêncial "Escrivinhístico" se supera. Tua mente anda tão fértil em potencial temático, furtado de situações vividas por ti e amigos teus que pode ser comparada com o seguinte: imagine tentar plantar "Eichornia crassipes" em um deserto, ela morreria em quastão de minutos. Já na tua mente, teria uma reprodução em massa e com variedades nunca vistas por nenhum biólogo (mesmo aqueles cheios de explicações, que quase ministram um curso para explicar por que a "1 + 1 = 2 e não 11 hehehe").
Parabéns irmãozinho! que todo esse teu talento te proporcione muito sucesso e alegrias!
Abração!