quarta-feira, 19 de março de 2008

Calça Jeans

Um dos piores dramas de uma criança é, indiscutivelmente, quebrar a perna. Ficar sem correr, sem brincar de esconder, sem ir ao colégio; nada de diversão. Com isso, os burros de carga são os pais. Ainda mais que crianças quando quebram algum osso ou machucam-se mais gravemente, necessitam de um período maior para a recuperação e locomoção da casa para a fisioterapia e vice-versa. No caso da perna, é preciso muito tempo até o osso calcificar. Coisa de longos dias, intermináveis semanas. Em média quatro meses. E foi assim com Marquinhos, um gurizão pimpão, de sete anos de idade que adorava jogar bola. Para piorar ainda mais um pouco a situação, inventou de quebrar a perna logo no primeiro dia de uso da primeira calça jeans de sua vida, a estréia dela, precisamente no Dia dos Pais.

A cena foi acidental, extremamente acidental. Depois de engolir a comida o guri pediu autorização para o pai, o Seu Marco Antônio, para até a casinha de brinquedos – aquelas casinhas que se sobe por uma escadinha de um lado e se desce do outro pelo escorregador – onde outras crianças brincavam. O Marquinhos era gordinho, daqueles bem fofinhos. Tinha o cabelo mais encaracolado do que pêlo de ovelha e as bochechas mais vermelhas que a bunda de um orangotango. Naquele dia, trajava a primeira calça jeans. “Calça de brim curinga”como diria a avó dele, a Dona Maurêa. Com seus sete anos, pesava 53 kg nos seus 1,51m. Uma almôndega, praticamente. Bem fofinha, é claro.

Além da calça jeans, o gurizão estava quase pilchado, com um lenço vermelho no pescoço, um cinto de fivela gaúcha e as botinas. Ah, as botinas! E lá se foi ele em direção a porta, munido de um álbum de figurinhas do Campeonato Brasileiro de 1993, da Panini em uma mão e na outra um bolinho de figurinhas para colar. Decerto, ele iria para a casinha, subiria lá, sentaria e colaria os as fotos jogadores, escudos e estádios, bem tranqüilito. Pensado e realizado. Foi exatamente assim que aconteceu. Enquanto as outras crianças brincavam no chão de brita, correndo para lá e para cá, o Marquinhos estava sentado lá no alto da casinha, de uns dois metros de altura, colando suas figurinhas e fazendo a digestão sem fazer nenhum esforço – seguindo a tradição ensinada pelo seu avô Ernane.

Depois de uns quinze minutos, começaria a soprar um vento, uma brisa passageira. E as figurinhas? Ela havia sido suficiente para fazer o bolinho de figurinhas voar de cima da casinha. E o Marquinhos? Ele não iria junto com elas, até porque seus 53 kg não se mexeriam dali nem por decreto de Itamar Franco, presidente do Brasil em 1993. Talvez nem o topete de Itamar se movimentaria com aquela brisa. A lei da física falhou naquele momento, mas por vontade do próprio guri. Ao ver as figurinhas voarem de lá de cima tentou, em um ato-reflexo, segurar as outras que já estavam levantando vôo. Não só as figurinhas, ele também se foi casinha abaixo. Mas, mas! Ficou pendurado pelas botinas. Botinas salva-vidas aquelas. Devia ser um par de botinas Sete Léguas pela qualidade. As botinas o salvariam temporariamente até que alguém o ajudasse.

A presilha e o cordão da bota ficaram presos no chão da casinha de diversão. O chão era feito de madeiras com frestas, frestas essas que permitiriam o salvamento temporário de Marquinhos. Temporário porque a presilha e o cordão não agüentariam muito tempo os 53 kg do gordinho. Ninguém por perto, todas as crianças haviam saído dali. Talvez estivessem atracadas em um sundae da Churrascaria Leão enquanto o guri ficara ali pendurado como um saco de batatas. Ninguém viu, ou fez que não o viu. Depois de tanto pedir ajuda, gritar por socorro e ficar com o sangue enrijecendo e avermelhando o rosto, começou a debater-se para cair e sair logo dali. “Booooooom!”fez o estrondo do Marquinhos no chão de britas que voaram para todos os lados. 53 kg mais a velocidade do peso caindo, bem, coisa de física. Caiu, assim como uma laranja cai da laranjeira. Caiu de modo estranho, sentado em cima das pernas. E ali ficou.

Com o estrondo, os garçons e outras pessoas das mesas próximas do espaço correram até lá para acudi-lo. Deu pena de ver aquela situação, pobre criança. Ele não conseguia se mexer, mal conseguia levantar-se. Alguma dor muito forte. Um, dois ou três ossos quebrados. Não chorava, era valente o gauchinho. Quando percebeu que não conseguia mexer a perna direita, pediu que chamassem seu pai:

- Chama o meu pai! É o Marco, é o Marco! Chama ele!
- Mas como ele é? Em que mesa ele está?
– perguntou o garçom.
- Ele tem bigode e barba! Bigode e barba!
- Qual a cor da camisa dele?
- Azul, azul, azul!

Não seria uma hora para maiores perguntas. A cena era cômica e dramática ao mesmo tempo. Uma criança despenca de uma altura de dois metros e cai sentada em cima das pernas. Alguma lesão ou machucado deve ter sofrido, nem que fossem apenas alguns arranhados. Mas o guri nem chorava! Sequer largava uma lágrima de crocodilo, nada. Até que outro garçom sugeriu de pegar uma cadeira para colocar o guri sentado, já que ele não conseguia se mexer e sequer levantar-se do chão sem a ajuda de alguém. Até que o pai chegaria ao local...

- Pai! Pai!
- O que foi meu filho? Onde dói?
– perguntou o pai.
- A perna direita! Eu não sinto nada, ficou dormente!
- Vamos lá que eu vou te levar na CEAT para ver o que aconteceu. Calma meu filho!

E no meio de todo o tumulto que se fez a partir da aglomeração de pessoas no pátio da casinha, a saída foi triunfal. Marquinhos parecia um rei sentado em seu trono – numa cadeira roubadas de alguma mesa, arranjada pelos garçons –, sendo carregado por três pessoas, os dois garçons e mais o Seu Marco Antônio. Durante o trajeto até as mesas onde estavam sentados, a mãe, a Dona Mariza, apareceu para ver o que havia acontecido. Toda a italianada da família veio aos gritos ver o pequeno gordinho seguida pelo restante da portuguesada. A dinda, a Dra. Mara, boa portuguesa que é, percebeu na hora que o afilhado havia sofrido uma fratura, a perna já estava ficando inchada mesmo com a calça por cima e para confirmar o diagnóstico sugeriu cortar a calça jeans, a primeira calça jeans do afilhado:

- Querido, eu vou cortar até o joelho para ver onde está doendo, está bem?
- Nãããããããão! A minha calça não! Não vais cortar, não vais!
– abrindo o maior berreiro seguido de choros soluçantes.
- Mas querido, eu preciso ver onde foi o machucado!
- Não, não e não!
– esperneava por causa da calça jeans e ainda chorava mais quando se lembrava do álbum de figurinhas:

- Eu quero o meu álbum! As figurinhas, eu quero as figurinhas!
- Marquinhos, eu vou lá fora pegar e guardar, viu?
– tentava acalmar o primo Paulo Gustavo, enquanto mais e mais pessoas vinham para a volta oferecer ajuda e ver o que estava acontecendo. O dia dos pais seria diferente, totalmente diferente para o pai, Seu Marco Antônio, e todos os outros integrantes das famílias Puccinelli, Leivas, Amado, Castro, Silva, enfim. Sem contar as famílias das outras mesas que tiveram seu domingão de Dia dos Pais afetado por assistir aquela cena.

E lá foi o Seu Marco Antônio levá-lo para a CEAT – um dos únicos lugares de Rio Grande, na época, para tratar lesões traumatológicas – na sua Parati 1.8 de placas ICM 3064 a fim de realmente diagnosticar o a lesão do filho.

Chegando à CEAT foram encaminhados diretamente para o atendimento emergencial. O médico de plantão era o Dr. Flavio Hanciau, um médico deveras tranqüilo. Tranqüilo mesmo para agüentar os choros incessantes de Marquinhos, depois de tirar as radiografias, na hora de cortar as calças jeans do pequeno para aí sim começar a enfaixar a perna.

- Marcos, eu preciso cortar a tua calça. – falou serenamente o doutor.
- A calça não! Eu não quero que corte, eu tiro! – dizia o Marquinhos aos prantos.
- Filho, não tem como tirar a tua perna está muito machucada, vai doer muito se tirares a calça! – interrompia o pai tentando acalmar o teimosinho.
- Paiêêêê... é a minha primeira calça jeans!
- Eu te compro outras cinco ou seis quando sairmos daqui, combinado?
- Mas Pai...
– ainda relutava o garoto que enquanto conversava com o pai, que o tapara a visão da perna, o Dr. Flavio juntamente com a enfermeira Denise lhe cortaram a perna direita da calça para começar a colocar a tala. O problema da calça jeans havia sido superado. Porém, outro problema surgiria quando o pai saíra da frente do garoto e que ele então assim pôde ver a sua perna. Amarela, verde, azul e muito roxa. Praticamente um micro-arco-íris com tantas cores:

- Paiêêêê... olha a minha perna, olha a minha perna! – gritava mais e mais, apavorado, agravando o choro que havia cessado.
- Filho, a tua perna está quebrada... É normal que fique assim. Vai passar, tu vais ver! – tentou acalmar o pai.
- Marcos, a tua perna está quebrada mesmo. A tíbia que é este osso aqui – apontou o médico para a perna do garoto mostrando os lugares das fraturas – foi atingida em três pontos.
- Mas eu ainda vou poder jogar bola, não é? – perguntou o gordinho, ainda soluçando do choro.
- Claro, com certeza! E ainda vais fazer muitos gols e eu vou assisti-los de perto – tentou acalmar, com palavras futuras, o Dr. Flavio.
- Ufaaa... Mas então, eu posso escolher a cor da tala? – questionou Marquinhos para o doutor, com os olhos inchados, mas com um sorriso já visível.
- Sim... – respondeu o doutor olhando de canto de olho para o pai com um sorriso apertado de contentamento.
- Eu quero vermelha! Vermelha da cor do Internacional, o meu timão! Não é pai?
- Não sei de nada... talvez sim!

O pai era gremista, assim como toda a família paterna. Teve de concordar para alegrar o filho em um momento tão delicado. Marquinhos escapou por pouco de uma cirurgia para consertar a tíbia com alguns pinos, por muito pouco mesmo. Sua recuperação levou aproximadamente quatro meses, além da fisioterapia posterior para recuperar aos poucos os movimentos da perna. O Seu Marco Antônio sofria três vezes por semana subindo e descendo vários lances de escada, já que moravam no quarto andar, para levar o gurizão até o centro de fisioterapia e também ao colégio, apenas para realizar as provas e não perder o ano, a segunda série do Ensino Fundamental, do Instituto Cristo Rei.

Durante o período em que esteve em casa com a perna entalada e depois engessada, sofreu muito com o calor e com as intermináveis coceiras. Adaptou uma régua de trinta centímetros para se coçar. Deu muito trabalho em casa, especialmente às avós Fany e Maurêa que cuidavam do pestinha da calças de jeans tamanho 40, já no período de aprender a andar de muletas. Além das muletas, cada avó seria uma muleta. Quatro apoios e nada do guri começar a andar. Talvez medo, insegurança por tanto tempo parado. Foram dias de muito tédio, exceto às quartas-feiras, sábados e domingos quando havia futebol na televisão. Nesses dias, o quarto dos pais virava um estádio de futebol. Era a rivalidade familiar da dupla Gre-Nal, que no final do Campeonato Brasileiro de 1993, não adiantaria de nada. Palmeiras campeão, Grêmio em décimo primeiro e Internacional em décimo terceiro lugar.

Depois dos fatos ocorridos, Marquinhos havia aprendido várias lições com as fraturas na tíbia. A primeira era objetiva, ao menos tinha que ser: precisava emagrecer, o quanto antes. A segunda era extremamente difícil, tanto como convencer um turco a emprestar dinheiro sem juros: convencer o pai a virar colorado. A terceira seria uma promessa, a de que nunca mais se esforçaria para salvar um álbum de figurinhas, não os deixaria de colecionar, apenas não se arriscaria sendo um Homem-Aranha para salvá-los. E a quarta, e última, era a conseqüência da fratura, um tipo de trauma adquirido: havia prometido que não usaria calças tão cedo, especialmente as calças jeans, as calças de brim curinga que tanto lhe apertavam as coxas e a cintura.

Quatro anos depois, totalmente recuperado das fraturas na tíbia, o Marquinhos voltou a jogar futsal para valer, na Semente Olímpica do Sesi, ao lado da CEAT. Até o Dr. Flavio Hanciau, algumas vezes, o assistira jogar nos campeonatos realizados no Ginásio do Sesi, inclusive o gordinho até marcou gols, mas com a canhotinha. Das promessas que o gauchinho havia feito, seguiu todas à risca, exceto uma. A primeira, a de emagrecer foi fichinha. Emagreceu e muito, ainda mais com o futsal e a natação. A segunda, por motivos vitais, ficará para um próximo encontro, um encontro superior com o pai. A terceira cumpre até hoje, coleciona alguns álbuns de figurinhas, pois se tornou ainda mais fanático pelo futebol e por esportes em geral. Já a quarta, bem, por motivos de força social e vital, precisa realmente usar calças jeans. Não sofre mais com o problema da barriguinha grande. Hoje, o garotinho cresceu. Mede 1,80m e pesa seus 80 kg, bem distribuídos. Usa calça 42. De todas as transformações ao longo dos anos e até de outras fraturas ocorridas, uma coisa é certa: ele prefere as bermudas e os calções, pois o trauma da primeira calça jeans cortada, desse, ele não esquece.

4 comentários:

Anônimo disse...

aaaaaa marquinhos!
fiquei te imaginando uma bolotija!
AHEIUHAIUEHIUAEAAUIEHAIUEHAIUE
e fiquei com pena de ti!
pobre guri!
a enfase foi no ceat meeu deus quanto tempo nao escutava isso!
morri!
Kiii to morrendo de saudades tuuua!
beeeijo (:

Nati Leivas disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Nati Leivas disse...

Não vais cortar, não vais...
Virou pelotense é?
Já te ensinei, esta palavra não existe. ou como tu gostas de falar NO ECXISTE.. iuhaiuahiauha

Gorduchinho da calça de brim rasgada :D uiaiauhaiuhaia

Mto bom o texto, mas eu já ouvi váááárias vezes está história, mais ou menos como a da barra solo, nella pietra e outros lugares situados em RG...
uiahaiuhaiuah

beijoss Gordinho

;@@

Jucinara disse...

Não sou mais a leitora fantasma!!
Hehehe... Marquinhos, AMEI, A-M-E-I mesmo... imaginei direitinhu tu caindo da casinha, mas não consigo te imaginar baixinho nem gordinho... na verdade nem tão baixinhos para 7 anos pois é quase a altura que tenho agora (humildes 1,58 e meio) hehehe
ADOREI mesmo Kito, e tuas crônicas estão fazendo sucesso no Curso de Programação Visual do Cefet!!
Saudades mil
Beijos :*