segunda-feira, 24 de março de 2008

O Balconista

O Luciano era o balconista mais conhecido de uma loja representante de uma operadora de celulares. O trabalho era feito sob medida para ele. Comunicação. Ai está a palavra que o Luciano gostava e gozava das ferramentas e das conseqüências dessa palavra de grande amplitude. O emissor competente com uma persuasão rápida, envolvente, capaz de vender os planos e os celulares mais caros para qualquer pessoa, especialmente, para as mulheres. Era o queridinho delas.

Virava e mexia e sempre aparecia um bilhetinho ou um pedaço de folha de caderno em cima do balcão de onde atendera. Enquanto buscava o aparelho pretendido pela cliente no estoque da loja, virgens e desvirginadas esbaldavam-se na ousadia de tentar persuadi-lo para um jantar, uma viagem ou uma noite de festa. Festa, outra palavra que Luciano gostava, na verdade idolatrava-a. Uma semana de muito trabalho e a recompensa? Seriam as festas nos finais de semana, junto com as mulheres, algumas de suas clientes.

Nos bilhetinhos que deixavam, flertavam com elogios e frases curtas. Já o Luciano como bom malandro que era, anotava no verso do mesmo papel deixado pelas clientes, o número do telefone correspondente de cada uma delas. Naquela sexta à tardinha, em um último atendimento depois de um dia cansativo de trabalho, adentraria na loja uma deusa de ébano. Uma mulata de tirar o fôlego da torcida do Flamengo. Ele é quem desejara deixar seu número, mas aconteceu o contrário. Ela deixara o nome e o telefone, o mesmo ritual dos bilhetinhos que acontecia com as outras clientes e, certa vez, até com um cliente.

- Aqui está o modelo que a senhora pediu!
- Senhora? Me chame de Suzana
– corrigiu-o.
- Está bem dona Suzana, desculpe.
- Errou de novo, apenas Suzana.

Suzana dali girou as sandálias e partiu em direção ao caixa para efetuar o pagamento do seu novo aparelho celular. Luciano, por detrás do balcão, ficou analisando a morena dos pés à cabeça, da cabeça aos pés. Inacreditável, parecia a morena de seus sonhos, quase uma Globeleza. Quando voltou a si, olhou para a mesa e viu um pedaço de papel: “Suzana 33116269 e o celular você agora sabe qual é. Te comunica!”. Estremeceu as pernas. Aquele bilhete realmente valeria a pena por todos os outros recebidos durante a semana. Correu até o balcão de entregas, empurrou Talita, a responsável pelas entregas, pegou a sacola com o celular e esticou a mão para fazer a entrega.

- Ai está o celular, Suzana.
- Mas quanta eficiência! Faz a venda e ainda entrega?
- Eficiência? Você ainda não viu nada!
- Ah é? Vou esperar para ver então...

Talita o ficara olhando sem saber o que falar. Luciano era seu tamanho “p”, “m” ou talvez até “g”. Adorava o jeito com que ele falava com as clientes. Cabelinho encaracoladinho, perfumado. Sempre atencioso com os colegas de trabalho, inclusive com ela. Era assim com todos, não fazia distinção ou seleção. Tratava a todos olhando nos olhos, assim como também tratava Talita. Mas ela achava diferente, precisava acabar com aquela procissão de mulheres que o seguia. A loja perderia a crescente dos últimos cinco meses – Luciano trabalhava há cinco meses e alguns dias na loja – mas ela tentaria ganhá-lo, senão ele, ao menos tentaria. Era a hora de deixar a covardia de lado. E assim fez.

Luciano era um rapaz de conduta exemplar. Segundo grau completo e superior iniciado em Administração de Empresas. Nas festas dos finais de semana não exagerava nos etílicos. Morava com a mãe e com o avô mais velho que, desde pequeno, lhe repassara as malandragens da família Antunes, vivia repetindo para o neto, enquanto ouvia seu rádio de pilhas grudado nos tímpanos, com o melhor sotaque português:

- Neto meu, queira honrar a nossa família! Aproveite a noite e as raparigas! Mas não me apareças com filhos, encape esse tico. E tenho dito!

O neto ficava mirando o velho Antônio se embalando na cadeira de balanço. O que será que o octogenário Antônio aprontara em sua adolescência? Naquele tempo nem havia camisinhas! Que avô moderno, muito moderno o português. Decerto havia aprendido pelas publicidades e campanhas nos jornais, revistas ou na televisão. A televisão! Era na televisão que havia aprendido essas coisas, certamente. “Talvez nunca tivesse um preservativo em mãos, sequer no lugar apropriado” – pensou o neto. “Ainda vou aprontar uma das boas um com ele!” – arquitetou.

Bateu a porta e seguiu para a noite. O velho Antônio, entre outros ensinamentos, sempre lhe dizia: “A noite é uma criança, e é nela que os pequenos vêm à tona na barriga das raparigas!”. Avôs têm a malandragem, a experiência de vida. Luciano na hora afogou a mão no bolso da calça. Pegou a carteira e verificou: dois preservativos. “Ufa!” e seguiu rumo ao carro, a noite poderia ser uma criança, mas ele estava livre, de certo modo, de algum tropeço. 23 anos, nada de filhos. Planejava acabar a faculdade e, quem sabe, pelos 30 casar e aí sim ter filhos.

Chegando à festa, decepção. Realmente uma decepção. Nada da mulata Suzana. Mais de uma hora de espera. Atraso, esquecimento ou um bolo? Mas como? Ela havia comprado um telefone novo e ele sabia do seu número. As mensagens haviam sido respondidas pela mulata e ele havia seguido o combinado de estar às 11h45 na frente do Lad’s Clube. Já eram quase de 1h! Resolvera entrar no clube. Sozinho, despretensioso já que a tal mulata o dera uma possível curva.

Com licença para cá, por favor para lá e já estava sendo paquerado por umas e outras. Ele tinha charme, era malandro assim como o velho Antônio. Encostou-se numa parede para ter uma vista melhor do lugar e dos alvos femininos. Depois de minutos sentiu-se observado por alguém. De repente, o garçom lhe aborda e lhe entrega um bilhete. Seria Suzana? O bilhete desmentia diretamente tal idéia. “Eu não sou a Suzana, sou bem melhor e menos artificial que ela!”. Mulheres têm essa mania de se compararem às outras, uma disputa pela atenção do macho.

Mas quem seria o tal fantasma? A observadora estaria por perto. Mas quem seria? Eram tantas clientes deixando telefones e nomes que Luciano não teria massa cinzenta suficiente para lembrar das características de todas, especialmente da caligrafia de cada uma. Pôs-se a olhar atentamente assim como uma câmera de segurança de shopping, 360° para achar uma silhueta, um rabo de saia que lhe fosse conhecido. E nada. Nada de Suzanas, Reginas, Flávias ou Carolinas. Quem seria a autora daquele encafifante bilhete? Precisara descobrir. Homens são assim. Precisam chegar ao desfecho para aí sim compreender as etapas instintivas pelas quais passaram e nem prestaram atenção.

- Senhor, outro bilhete...
- Amigo, amigo! Quem está mandando este bilhete?
- Não posso revelar, fui impedido!
- Tem certeza?
– perguntou Luciano, praticamente colocando uma nota de cinco reais no bolso do paletó branco do garçom.
- Foi uma moça com o cabelo loiro fogo, com os lábios carnudos e de altura mediana. Coisa de 1,65, por aí.
- E em qual mesa ela está?
- Outros cinco reais poderiam me fazer dizer...
- Pronto. Pronto. Aí está!
– pagou o curioso Luciano.
- Está na mesa 24, entre o espelho e o bar. Está de vermelho! De vermelho!
- Obrigado amigo!

- Uma boa festa para o senhor!

Dez reais não havia sido um preço tão caro pela informação. Já que Luciano não era de beber muito, alguns reais a menos na carteira não lhe fariam falta. Leu o segundo bilhete que dizia: "Me procure! Estou bem perto de você!". Aos poucos foi chegando na mesa 24 seguindo as coordenadas do garçom amigo. Driblando homens, mulheres e casais. Não via a hora de chegar logo na mesa 24 e ver qual das clientes estaria flertando através de bilhetes. Não era Suzana e a essa altura da noite nem lembrara mais dela. Nem pintada de ouro a queria ver. Decerto, alguém que soubesse da existência de Suzana, da estonteante mulata estilo Globeleza.

Uma loira com cabelo fogo. E de vermelho. Exatamente o que o garçom lhe repassara após o suborninho pela informação. Aquela silhueta não lhe era estranha. Aos poucos foi se aproximando e pensando no que falaria ao chegar abordando pelas costas. Abordar pelas costas foi um dos sábios conceitos de seu avô em relação a abordar mulheres. Loira-fogo? Que beleza, adorava as loiras. Loiras, morenas, ruivas. Não tinha erro nem tiros na água. Os alvos eram seletos. Imaginava sua boca, encharcada pelo mais vermelho batom ou por algum brilho labial. Isso sim ele selecionava. Adorava mulheres com a boca carnuda, com lábios suculentos.

Era chegada a hora do aborde.

Luciano chegara nas costas da loira de vermelho que bebericava uma cervejinha com uma agenda aberta à sua frente ladeada pela bolsa e por uma caneta. Pensou nas melhores frases, mas preferiu o convencional e funcional aborde.

- Oi...
- Como assim?
– interrogou de prima a loira-fogo do vestido vermelho depois de girar pescoço como se fosse uma propaganda de shampoo.
- Talita? É você? – perguntou Luciano sem entender o que havia acontecido e surpreso por vê-la sem óculos.
- Eu não acredito! Como que você me achou? Como adivinhou? Foi pela minha letra? – atropelou Talita.
- Eu presto atenção em tudo, você sabe como eu sou! Como sabias da Suzana?
- Ah, falas da mulata Globeleza que foi na loja hoje à tarde?
- Sim...
- Eu percebi tudo quando corresses atrás do balcão para ir entregar o pacote para ela. Vi também o bilhete que ela te deixou em cima do balcão.
- Tu não trabalhas é? Ficas prestando atenção nos outros?
– brincou Luciano.
- Claro que eu trabalho, mas também presto atenção nas coisas do meu interesse! Não faço bem?
- É... mas como visses o bilhete?
- Depois de quase me derrubares, eu sai do meu setor e fui correndo lá em cima do balcão pegar o bilhete dela. Peguei um papel daqueles que tu anotas os preços, igual ao que ela usou, e passei por cima. Na hora do telefone, coloquei o meu no lugar do dela. Tudo muito rápido, bem simples!
- Talita, posso sentar?
- Claro Lú, desculpa não ter convidado!
- Pelo jeito essa história merece explicação melhor, não?
- É, mas a noite é uma criança, temos bastante tempo para tudo! Afinal, amanhã é sábado e estamos de folga!

Papo vai e papo vem. Mãos em cima da mesa e Talita explicando toda a trama que havia feito para trocar os telefones de Suzana. Luciano descobriria que o telefone do papel, o que seria da casa de Suzana, seria o telefone da casa de Talita. E o telefone celular que ele havia conferido no cadastro para mandar as mensagens para Suzana, estava alterado pelo número de celular de Talita. Por conseqüência disso, todas as mensagens que foram trocadas combinando o encontro na festa, foram respondidas por Talita. O plano perfeito. Suzana? Suzana havia sido demitida.

Talita! Uma colega de trabalho que havia se transformado na noite daquela sexta-feira. Havia deixado de ser covarde pelo ousado plano que arquitetara. Não só pelo plano, mas pelo cabelo solto, pelo vestido vermelho, pela boca brilhante por causa do brilho gerado do gloss e, sobretudo, pelo detalhe crucial: os óculos dela. A inexistência dele havia transformado Talita num mulherão daqueles de tirar o fôlego, mais do que a mulata Suzana. Talita não era uma Carla Perez nos seus áureos tempos, era bem diferente da dançarina. Era muito bonita também, mas tinha um plus: tinha conteúdo e não ganhava a vida rebolando vulgarmente.

Hoje o Luciano tem 32 anos, não mora mais em casa com a mãe e o avô, ainda vivo, quase centenário e ainda continua charmoso. Concluiu a faculdade de Administração, fez pós-graduação em Marketing e há dois anos abriu a sua própria franquia de uma operadora de celular. É casado e tem duas filhas, Ana Paula de cinco anos e Juliana de três. É casado com Talita, a ex-colega de trabalho Talita, hoje, mãe das filhas de Luciano. O esforçado atendente do balcão havia conquistado a melhor clientela da sua vida, e tudo por acaso ou por causa da ousadia da Talita. O balconista saiu detrás do balcão e, hoje, ocupa uma confortável cadeira numa sala climatizada da gerência do seu próprio negócio. Ao lado da esposa, é claro. Nada de balcões ou atendimentos para Luciano. Ordens de Talita.

Um comentário:

Anônimo disse...

são coisas da vida!
os acasos fazem parte sempre.. ainda bem q tiveram um final feliz! a outra, devia ser uma estraga-lares! hahahahaha

mto bom o texto! :>