segunda-feira, 31 de março de 2008

A Casa 457 - Capítulo V - Final


Louzada preferira novamente o esconderijo entre as petúnias novamente e as carnívoras formigas. Preferia a dor a ser descoberto. Agachou-se e correu em direção à floreira. Não fez nenhum barulho significativo, mas os policiais chegaram a olhar para trás. Como não viram nada, suspeitaram do barulho do caminhão de lixo e ficou por isso mesmo. O caminhão do lixo aproximando-se da lixeira e os policiais tentando achar alguma pista naqueles dois carros. Enquanto isso, apenas os olhos de Louzada podiam ser enxergados lá de fora. Brancos e estalados no meio de petúnias e formigas – ainda muitas formigas –, controlando os movimentos dos policiais e dos garis. Precisava sair daquela floreira o mais rápido possível, antes que as formigas lhe atacassem novamente.

Em menos de cinco minutos Louzada estava de volta à sua posição de base, atrás da lixeira. Os policiais rumavam em direção à viatura, iriam embora finalmente. A idéia de chamar atenção através do bilhete havia falhado, assim como também a pedra que ganhara destino diferente do que o corpo de Lacerda e atingira o golf verde-musgo. Nem com a pedra e o conseqüente alarme disparado Louzada conseguira despertar a atenção daquelas pessoas casa 457. Aquilo já estava ficando sem controle. Sem resultados. Louzada precisava tomar atitudes mais incisivas, mais objetivas. “Quem sabe olhar através do espaço no canto da cortina?” – pensara. Poderia ser arriscado e colocar tudo a perder em apenas uma noite de ronda. Mas mesmo assim começou por fazer isso.

Atravessara a rua como um paladino corredor, correndo com os braços em riste colados ao corpo. Não temeria, não seria covarde. Em dois tempos estava trepado na saliência da parede e apoiando-se no parapeito da janela com os cotovelos. Via algumas sombras vindas do corredor. Ouvia vozes. Nada audível, mas ouvia vozes. Aos poucos decifraria que não havia duas pessoas lá dentro e sim muito mais. Estava acontecendo uma festa, certamente. Talvez uma junção de amigos comemorando um aniversário. Quem sabe algo mais íntimo? Uma orgia? Louzada não sabia. Necessitava realmente descobrir ao menos alguma coisa naquela noite. A casa 457 não recebia apenas duas pessoas naquela noite. Muitas pessoas estavam lá dentro. “Mas por onde será que elas entraram?”perguntava-se mentalmente.

A casa 457 estava habitada ou temporariamente habitada. Louzada havia atendido casos no final dos anos 90 em que casas eram alugadas para servirem como casas de prostituição e jogos de azar. A casa 457 seria uma casa alugada ou habitada por essa finalidade? Louzada podia jurar que sim. Agora não só as vozes de várias pessoas eram ouvidas. Música, muita música vinha daquele corredor. Louzada mantinha-se trepado com os cotovelos calcados na janela à espera de alguma pista. Não agüentaria por muito tempo. Mais do que nunca, necessitava ver de perto aquilo e não somente pela fresta da cortina. Pulou para trás e correu para sua casa. Tivera uma outra idéia.

Zezé abriu a porta e apenas escutou um muxoxo do marido. Louzada correra em direção ao final do corredor de sua casa. Rumava ao que tudo indicava à cozinha ou ao quintal. Era o quintal. Louzada abriu a porta da cozinha e seguiu na direção de um velho casebre que usava como um depósito de coisas e também como oficina. Ligou a luz, tirou a bicicleta do caminho e segurou a escada. Uma escada. Louzada planejava mirar por cima do muro de sua casa para ver o que estava acontecendo no quintal ou na parte dos fundos da casa vizinha, a misteriosa casa 457. As casas da rua eram quase todas iguais. Sua casa era igual a casa 457. Sabia que no fundo da daquela havia um quintal e possivelmente uma piscina ou um outro quarto nos fundos. Nunca houvera antes bisbilhotado a casa ao lado, assim também como Zezé. Nunca mesmo, nem pela curiosidade que a atormentava.

Louzada encostou aquela escada no muro e subira pé por pé, degrau a degrau. Não fez barulho. Quando chegara à metade da escada pensou que a luz da cozinha podia o atrapalhar. Desceu, apagou a luz e sinalizou com o indicador junto à boca para Zezé não falar nada. Zezé obedeceu e permaneceu de braços cruzados na porta da cozinha. Louzada subira até o final da escada em meio à escuridão do pátio. Não fazia barulho por medo de ser descoberto pelas pessoas ou possivelmente por algum cachorro. Nunca antes havia escutado um cachorro latir, mas, hoje, tudo era possível. Assim como aquelas pessoas que tomavam conta daquela casa, um fato extraordinário em anos. A casa 457 estava definitivamente habitada e parecendo mais uma festa do que uma pacata casa conforme os relatos dos vizinhos.

Mas o que era aquilo? Louzada não acreditara no que vira. O burburinho já estava aceitável devido à presença daquele casal dos carros, mas havia outras pessoas. Muitas outras. Louzada enxergava as silhuetas delas através da janela do quarto dos fundos, que na verdade não era um quarto e sim uma enorme porta ladeada por dois grandes vitrôs coloridos. Inúmeras sombras e nenhum movimento no quintal. Nem cachorros. Poderia arriscar-se a pular aquele muro e ver de perto. Não tinha nada a perder. Dois tombos, o susto com Lacerda, a polícia e o caminhão do lixo. Era uma grande aventura para um sexagenário. O muro não era tão alto, cerca de dois metros, um pouco mais disso. Louzada era bom nisso, não tinha medo de altura, pois havia praticado muito isso no quartel.

Pulou e pulou firme, sem nenhum vacilo ou torcida de tornozelo. Após fixar os pés nos chão, olhou para os dois lados verificando cada objeto da cena. À esquerda a casa da frente com a luz do corredor ligada. Onde estava o quintal, só grama e alguns baldes coloridos ao lado do tanque. E, à direita, a peça que mais parecia uma fortaleza ornamentada por aqueles grandes e bonitos vitrôs. Respirou fundo e dirigiu-se sorrateiramente, encostado na parede, tendo-a como base. Chegou perto de um dos vitrôs e metera as retinas no canto. O que era aquilo? Uma festa? Mas como isso? Nunca, nunca, nunquinha alguém entrara naquela casa e hoje ela estava repleta de pessoas. Mas como se apenas vira duas pessoas entrar lá? Zezé saberia de alguém que houvesse entrado e lhe avisara. Por onde haviam entrado tantas pessoas? Louzada não acreditava ainda no que vira.

Observava tentando juntar todas as informações dos vizinhos e mais as que havia conseguido com a ronda. “Macacos me mordam!”exclamava espantado. Uma casa de jogos. Uma casa de azar clandestina havia sido montada nos fundos da casa 457. Roleta, jogos de cartas e bingo; bingo eletrônico e bingo ditado por uma linda mulher de preto – a balzaca que havia visto sair do gol vermelho e entrar na casa. Muitas outras pessoas estavam concentradas nos números, tragando cigarros e bebendo whiskys embaixo daquela nuvem de fumaça oriunda dos cigarros. Louzada tinha pavor de cigarros. Tinha ainda mais pavor dos jogos de azar. Nunca havia entrado em uma casa de jogos para divertimento, apenas para apreensão de máquinas e cumprimento dos mandatos de seus superiores. Haveria de tomar providências.

Um barulho de porta abrindo. A porta se abrira aos poucos, devagar, devagarzinho, quase em câmera lenta. Um homem e uma criança. Uma criança? Como que uma pessoa pode levar uma criança para um lugar desses? Louzada já estava fulo da vida com uma situação daquelas, e agora mais ainda por causa de uma criança naquele tipo de ambiente. Precisava dar um fim a casa de jogos clandestina. Mas antes necessitava esconder-se naquele pátio sem lixeiras ou floreiras para disfarçar-se. Em um ato de desespero pela falta de opções de esconderijos resolveu encolher-se no vértice das duas paredes do fundo, a do falso quarto e a do muro. Cobriu-se com seu casacão bege até a cabeça e ali ficou, tremelicando e pedindo apoio de forças superiores para não ser descoberto, apenas ficara ouvindo a conversa entre o homem e a criança:

- Hoje a noite está perfeita, chefe! Entrou quase o triplo do montante em apenas duas horas de jogo – dizia o homem.
- É verdade! – respondera a criança. Mas o quê uma criança sabia de negócios de casas de azar? Chefe? Uma criança chefe? Louzada não acreditara no que escutava. Precisava conferir para ver se era verdade. Abriu uma fresta do casaco e confirmara: não se tratava de uma criança e sim de um homem anão. Ao ver o rosto do anão, Louzada confirmara mais uma coisa, tratava-se de “Chinês”, um ex-camelô que havia aberto uma casa de jogos clandestina com o dinheiro oriundo das excursões para o Paraguai que organizava ainda na vida de comerciante informal. Chinês, não era mais camelô, estava fugido da polícia há anos, mas continuava informal e, sobretudo, agora, um fora-da-lei.

Os dois homens saíram do falso quarto em direção a casa e não viram Louzada encolhido no canto do quintal. Louzada estava a salvo. O sexagenário havia matado a charada. Muita ousadia para um civil aposentado que levava a vida pacatamente, descansando das noites em claro nos plantões da polícia civil local. Antes de dar por encerrado o seu caso, precisava sair dali antes que mais alguém pudesse aparecer. Precisava achar um jeito de volver a sua casa. “Os baldes” – pensara. Esgueirando-se na parede foi até os baldes ao lado do tanque do pátio e pegou todos que podia. Esvaziou alguns e os empilhara, um dentro do outro, emborcados para baixo, servindo de escada e apoio para ele escalar o muro. Conseguira. Louzada era pura adrenalina. Faltava jeito e prática, mas sobrava disposição.

“Agora quem dá as ordens sou eu... vou fazer um joguinho com aquele Chinês safado e vou gritar bingo antes dele!” – planejava mentalmente com um sorriso sarcástico no rosto. Tinha provas, tinha o desfecho do caso em mãos. Louzada correra para o telefone e ligara para a polícia. Zezé só observava o marido, tomada de curiosidade e abstendo-se do sinal de silêncio que ele fizera ao pegar o gancho do telefone.

- Boa noite, em que podemos ajudar? – dizia o plantonista do outro lado da linha.
- O Figueiredo se encontra?
- Sim, quem gostaria?
- Diga que é Louzada e que tenho o caso do mês para ele!
- Um momento, por favor.

O plantonista foi chamar o velho Figueiredo que ainda estava trabalhando firme e forte na civil. Era um exemplo para seus colegas, mesmo com 72 anos e com quatro pontes de safena, continuava na labuta.

- Louzada, meu irmão de coração!
- Figueiredo! Como estás?
- Fechando mais um turno, mais um dia!
- Não dormirás cedo hoje...
- Mas por que, meu irmão?
- Tenho o caso do mês para ti!
- Explica-te melhor...
– pediu para o amigo enquanto coçava o queixo com a mão esquerda.
- Descobri uma casa de jogos clandestina ao lado da minha casa, aqui, na Dezenove de Fevereiro. Sabes a casa 457, a casa misteriosa aquela que te falava ainda nos tempos de civil?
- Sei sim, ao lado da tua!
- Pois é! A Zezé estava tentando descobrir e me pediu ajuda. Tirei-a das investigações e fui averiguar com nos velhos tempos. Dito e feito. Nada de coisas de outro mundo e sim uma casa de jogos de azar nos fundos da casa, na peça dos fundos que na minha é um quarto, na da casa 457, é uma casa de jogos!
- Estou mandando uma equipe agora mesmo!
- Três carros, seis homens e uma ordem de apreensão, nada menos que isso. A voz de prisão tu darás aqui, decerto. Lembra-te do Chinês, aquele camelô que prendemos várias vezes pelos produtos sem notas fiscais que trazia do Paraguai e que está sumido há anos?
- Claro, o anão!
- Ele está metido e é o dono ou sócio do negócio.
- Louzada! Não sabes a alegria que desses com este telefonema!
- A alma não muda caro Figueiredo, mesmo que os anos tentem me tirar as forças!
- É assim que se fala! Estou indo aí. Espera-me com um café para comemorarmos.
- Aguardo-te, bom trabalho.
- Até.

Caso resolvido e menos uma casa de jogos clandestina em Rio Grande. Louzada, além de ter resolvido um caso da polícia local, havia matado a curiosidade que o aflorava durante anos. De quebra, virou o herói de Zezé que daqui por diante capricharia nos deliciosos doces à base de uva. O velho Louzada descobrira um cassino clandestino, uma casa de jogos de azar no fundo casa misteriosa casa 457 da velha Dezenove de Fevereiro. Uma casa que não tinha apenas a entrada pela Dezenove de Fevereiro e sim duas entradas: a convencional e a pela rua de trás. Duas entradas. Era por isso que a casa em si não era tão visitada há anos e sim a entrada de trás que dava destino ao quarto dos fundos, o quarto dos jogos. O mistério havia sido desvendado e Louzada, mesmo aposentado, descobrira o mistério e matara a curiosidade de sua esposa e de todos os outros vizinhos da quadra. Louzada virara um herói para eles, um herói sexagenário. E, diga-se de passagem, um herói em plena forma.

Um comentário:

Anônimo disse...

Agora siiiiim!
Louzada é o herói da gurizada! hahaha :>

Muito bom o desfecho!

abraaaaço!