O Traçantes queria ser padre. E não havia ninguém naquele colégio que tirasse isso da cabeça dele. 1,90m de altura e um bom futuro como goleiro se quisesse seguir a vida de jogador de futebol, mas nascera com o desejo do sacerdócio. Aquilo vinha de berço, decerto. Freqüentava as aulas tão assiduamente, assim como as missas e confraternizações das irmãs do nosso colégio, o lendário Instituto Cristo Rei, um colégio de Irmãs. Até quando não havia mais algum evento religioso, o Traçantes ficava na capela do colégio arrumando os bancos e tirando o pó das imagens. Queria ser padre.
Durante os intervalos, chegava até a professora e sussurrava que tinha de sair cinco minutos antes do sinal para chegar a tempo no bar da Escola – lugar onde trabalhava durante todos os intervalos da manhã e da tarde. Era um guri esforçado e persistente no que tangia seus 14 anos. O Traçantes tinha a diferença de três anos para mais do que a média de idade da turma. Mas convivia conosco sem diferenças. Diferenças. Essa palavra ele preferia ignorar de seu vocabulário. Não gostava de ser diferente dos outros e muito menos que os outros o achassem diferente. Na verdade, preferia que os outros não notassem suas diferenças.
Por trabalhar no bar do colégio para ganhar um dinheirinho extra para ajudar em casa; por querer ser padre e por ter quase 1,90 m e pesar nem 55 kg, acabava se achando diferente. Alguns das séries mais adiantadas do colégio, o chamavam de Saco de Osso. “O Saco de Osso vem aqui rezar com a gente!” – gritavam alguns desocupados. Outros preferiam chamá-lo de Capelão ou Mônica – por causa dos seus dentes. Coisas de colégio. Ridículas. Ele nunca havia feito mal a uma mosca. Respeitava tudo e a todos naquele colégio; os outros preferiam ficar perturbando-o. Um teste de paciência para qualquer mortal.
Nas horas vagas lá estava ele tirando o pó dos santos da capela. Arrumava os bancos, colava os cartazes da campanha da fraternidade junto com a Irmã Elenar. De quebra, achava tempo para organizar a biblioteca com a Irmã Maria Luísa e ainda arrumava um tempinho para dar atenção aos amigos dele, um pequeno grupo: eu, Hermes, Barbieri, Ítalo e o malandro do Fabinho. Esse era o nosso time de futsal. Tínhamos seis no time, porque nem sempre o Traçantes estava disponível para bater uma bolinha. Ele era o nosso goleiro. Ficava lá atrás dando ordens e cutucando a cabeça no travessão com aquela altura de poste. Um bom goleiro, um bom aluno e talvez um futuro padre.
Durante seis anos convivi com o Traçantes. Na verdade, Traçantes era o sobrenome dele. Um sobrenome de general, imponente. Um bom nome para um goleiro; um nome respeitador. O nome dele era Carlos Eduardo. O melhor goleiro da história do Instituto Cristo Rei. Talvez o aluno mais polivalente que já houvera passado por lá. Poucos fizeram história naquele colégio, o Traçantes, fora um deles. Se eu fosse o diretor, colocaria um busto de prata dele na entrada da escola. Senão o busto, talvez um retrato. Não de melhor aluno, mas de exemplo de persistência e também de dedicação e paciência para com a instituição, com as irmãs e, sobretudo, com aqueles alunos que ficavam zombando dele.
Lembro certa vez quando ele inventou de jogar um campeonato lá mesmo no colégio. Poxa, nós não jogávamos nada! Eu, um gordinho metido a jogador, recém retornando no futebol depois de quebrar a tíbia em três lugares. O Fabinho não era ainda um bom lateral, assim como o Barbieri que se enrolava com a bola. O Hermes era um bom zagueiro, a bola poderia passar, mas o jogador adversário nunca passava. Ruim para nós, sempre motivo de cartão amarelo ou vermelho. Já o Ítalo baixava a cabeça, driblava todo o time adversário e perdia a bola na cara do gol. Restava quem? O Traçantes! Mas um bom time não se faz apenas do goleiro, se faz a partir dele. Nós não tínhamos um time para campeonato e sim um time para brincar nas educações físicas contra as outras séries.
Inscrevemo-nos no bendito campeonato organizado pela professora Neiva juntamente com a Associação de Pais e Mestres. Culpa do Traçantes. Sabíamos que seria um pouco difícil. Talvez difícil. Não, sabíamos que seria horrível! Tomaríamos vinte gols por partida mesmo com o Traçantes tentando dar uma de goleiro aranha lá atrás com vários braços e mãos. Apenas achávamos e já estávamos com medo. Imagine só no dia de estréia do campeonato? As pernas bamboleariam mais do que gravetos. Os times da sétima e oitava série iriam nos engolir. O Traçantes inventou de treinar todos os dias depois da aula. Deu uma de técnico e assim fez.
Convidou o Jorge, o dono do bar do colégio, para ser o treinador. Treinávamos todos os dias. O nosso goleiro acabou pedindo liberação do bar para jogar na hora do recreio conosco. 20 minutos de futsal, mas ele preferiu o futsal ao dinheirinho extra. Continuou saindo cinco minutos antes da aula, só que não para ir trabalhar e sim para pegar a bola com a Irmã Clecimara – atualmente outorgada Cidadã Rio-Grandina – e correr para garantir a vez na quadra do pátio grande.
Aqueles treinos extra-aulas e jogos na hora do recreio começaram a dar forma ao nosso time. Traçantes; Hermes, Fabinho; Barbieri e Ítalo – e eu no banco revezando com Ítalo ou Barbieri para fazer a frente do time. Começamos a ganhar nos treinos contra os times das turmas da tarde e até conseguimos a proeza de ganhar, na hora do recreio, do time dos irmãos gêmeos Ângelo e André que confundiam a zaga do nosso time, principalmente o Hermes. Fomos pegando jeito até que começou o campeonato e uma coisa até então aceitável aconteceu: começamos perdendo 4 a 2. E dos dois gols, um foi de quem? Do Traçantes, o goleiro artilheiro.
Tínhamos o nosso Rogério Ceni das quadras de futsal. Um ótimo goleiro debaixo da goleira e um pivô dos sonhos na hora de aflição. O gol foi muito bonito e ninguém esqueceu na semana seguinte, inclusive aqueles que ficavam zombando do Traçantes o chamando daquelas coisas que já falei. Pelo contrário, não falavam nada. Um silêncio só. Só olhares. O silêncio dos olhares. Na hora da visita à capela na aula de religião, até o padre da Congregação dera parabéns ao Traçantes pelo gol e o incentivou na frente de todos:
- Ainda terás outros desafios pela frente! Não desista, meu filho! Quero-te daqui alguns anos embaixo da goleira do time da nossa irmandade!
Aquela frase o marcara. Marcara forte, marcara a fundo. Era o incentivo que ele tinha de ser um bom goleiro. Porém não só um goleiro, aquela frase era a voz saída de um exemplo que Carlos Eduardo seguia e se espelhava. Era o incentivo que ganhara de continuar sendo também um bom aluno, um bom ajudante da família, do bar e das irmãs e de certamente trilhar o caminho do sacerdócio, confirmando o prazer e a vocação que vinha de berço. Mas nunca se esquecendo do sagrado futebolzinho com os amigos.
Não ganhamos aquele campeonato, ficamos em quatro na classificação geral. Oito partidas, três derrotas, três vitórias e dois empates. Um resultado bem diferente do esperado por nós antes dos treinos e do próprio campeonato. Mesmo o nosso time não tendo ganhado nenhum troféu ou medalha pelo 4° lugar, o Traçantes foi o goleiro menos vazado e ganhou um troféu e uma medalha pelo desempenho naquele certame. Todos os aplaudiram de pé na hora da premiação. Os times da oitava e sétima série – dos alunos que tanto perturbaram o Traçantes pelas suas escolhas e características físicas – ladeados na hora da premiação, o cumprimentaram, um por um, como se o nosso goleiro fosse um exemplo a ser seguido. E era. Diferenças esquecidas. Talvez pelo futebol ou pelo exemplo de como o Carlos Eduardo enfrentou aqueles desaforos durante anos.
Tolerância, foco e bom humor. Atitudes simples porém complexas que muitas vezes não são lembradas por alguns no dia-a-dia para com os outros. Não sei se o Traçantes acabou seguindo os projetos ligados à vida religiosa devido ao afastamento inevitável do término de colégio. Mas assim como ele, Vanessa Lima Vidal, 23 anos, deficiente auditiva, Miss Ceará, ficou em segundo lugar no Miss Brasil deste ano. Ela superou diferenças morais e físicas com muito bom humor, teve foco e, sobretudo, tolerância para com aqueles que tentaram perturbá-la durante o caminho. Sejam pequenas ou grandes as diferenças, manter o norte sem desviar a atenção, assim como eles fizeram, é a garantia de melhor resultado e, até hoje, ainda é o melhor tapa na cara dos que um dia duvidaram e zombaram das diferenças e do potencial de alguém.
Durante os intervalos, chegava até a professora e sussurrava que tinha de sair cinco minutos antes do sinal para chegar a tempo no bar da Escola – lugar onde trabalhava durante todos os intervalos da manhã e da tarde. Era um guri esforçado e persistente no que tangia seus 14 anos. O Traçantes tinha a diferença de três anos para mais do que a média de idade da turma. Mas convivia conosco sem diferenças. Diferenças. Essa palavra ele preferia ignorar de seu vocabulário. Não gostava de ser diferente dos outros e muito menos que os outros o achassem diferente. Na verdade, preferia que os outros não notassem suas diferenças.
Por trabalhar no bar do colégio para ganhar um dinheirinho extra para ajudar em casa; por querer ser padre e por ter quase 1,90 m e pesar nem 55 kg, acabava se achando diferente. Alguns das séries mais adiantadas do colégio, o chamavam de Saco de Osso. “O Saco de Osso vem aqui rezar com a gente!” – gritavam alguns desocupados. Outros preferiam chamá-lo de Capelão ou Mônica – por causa dos seus dentes. Coisas de colégio. Ridículas. Ele nunca havia feito mal a uma mosca. Respeitava tudo e a todos naquele colégio; os outros preferiam ficar perturbando-o. Um teste de paciência para qualquer mortal.
Nas horas vagas lá estava ele tirando o pó dos santos da capela. Arrumava os bancos, colava os cartazes da campanha da fraternidade junto com a Irmã Elenar. De quebra, achava tempo para organizar a biblioteca com a Irmã Maria Luísa e ainda arrumava um tempinho para dar atenção aos amigos dele, um pequeno grupo: eu, Hermes, Barbieri, Ítalo e o malandro do Fabinho. Esse era o nosso time de futsal. Tínhamos seis no time, porque nem sempre o Traçantes estava disponível para bater uma bolinha. Ele era o nosso goleiro. Ficava lá atrás dando ordens e cutucando a cabeça no travessão com aquela altura de poste. Um bom goleiro, um bom aluno e talvez um futuro padre.
Durante seis anos convivi com o Traçantes. Na verdade, Traçantes era o sobrenome dele. Um sobrenome de general, imponente. Um bom nome para um goleiro; um nome respeitador. O nome dele era Carlos Eduardo. O melhor goleiro da história do Instituto Cristo Rei. Talvez o aluno mais polivalente que já houvera passado por lá. Poucos fizeram história naquele colégio, o Traçantes, fora um deles. Se eu fosse o diretor, colocaria um busto de prata dele na entrada da escola. Senão o busto, talvez um retrato. Não de melhor aluno, mas de exemplo de persistência e também de dedicação e paciência para com a instituição, com as irmãs e, sobretudo, com aqueles alunos que ficavam zombando dele.
Lembro certa vez quando ele inventou de jogar um campeonato lá mesmo no colégio. Poxa, nós não jogávamos nada! Eu, um gordinho metido a jogador, recém retornando no futebol depois de quebrar a tíbia em três lugares. O Fabinho não era ainda um bom lateral, assim como o Barbieri que se enrolava com a bola. O Hermes era um bom zagueiro, a bola poderia passar, mas o jogador adversário nunca passava. Ruim para nós, sempre motivo de cartão amarelo ou vermelho. Já o Ítalo baixava a cabeça, driblava todo o time adversário e perdia a bola na cara do gol. Restava quem? O Traçantes! Mas um bom time não se faz apenas do goleiro, se faz a partir dele. Nós não tínhamos um time para campeonato e sim um time para brincar nas educações físicas contra as outras séries.
Inscrevemo-nos no bendito campeonato organizado pela professora Neiva juntamente com a Associação de Pais e Mestres. Culpa do Traçantes. Sabíamos que seria um pouco difícil. Talvez difícil. Não, sabíamos que seria horrível! Tomaríamos vinte gols por partida mesmo com o Traçantes tentando dar uma de goleiro aranha lá atrás com vários braços e mãos. Apenas achávamos e já estávamos com medo. Imagine só no dia de estréia do campeonato? As pernas bamboleariam mais do que gravetos. Os times da sétima e oitava série iriam nos engolir. O Traçantes inventou de treinar todos os dias depois da aula. Deu uma de técnico e assim fez.
Convidou o Jorge, o dono do bar do colégio, para ser o treinador. Treinávamos todos os dias. O nosso goleiro acabou pedindo liberação do bar para jogar na hora do recreio conosco. 20 minutos de futsal, mas ele preferiu o futsal ao dinheirinho extra. Continuou saindo cinco minutos antes da aula, só que não para ir trabalhar e sim para pegar a bola com a Irmã Clecimara – atualmente outorgada Cidadã Rio-Grandina – e correr para garantir a vez na quadra do pátio grande.
Aqueles treinos extra-aulas e jogos na hora do recreio começaram a dar forma ao nosso time. Traçantes; Hermes, Fabinho; Barbieri e Ítalo – e eu no banco revezando com Ítalo ou Barbieri para fazer a frente do time. Começamos a ganhar nos treinos contra os times das turmas da tarde e até conseguimos a proeza de ganhar, na hora do recreio, do time dos irmãos gêmeos Ângelo e André que confundiam a zaga do nosso time, principalmente o Hermes. Fomos pegando jeito até que começou o campeonato e uma coisa até então aceitável aconteceu: começamos perdendo 4 a 2. E dos dois gols, um foi de quem? Do Traçantes, o goleiro artilheiro.
Tínhamos o nosso Rogério Ceni das quadras de futsal. Um ótimo goleiro debaixo da goleira e um pivô dos sonhos na hora de aflição. O gol foi muito bonito e ninguém esqueceu na semana seguinte, inclusive aqueles que ficavam zombando do Traçantes o chamando daquelas coisas que já falei. Pelo contrário, não falavam nada. Um silêncio só. Só olhares. O silêncio dos olhares. Na hora da visita à capela na aula de religião, até o padre da Congregação dera parabéns ao Traçantes pelo gol e o incentivou na frente de todos:
- Ainda terás outros desafios pela frente! Não desista, meu filho! Quero-te daqui alguns anos embaixo da goleira do time da nossa irmandade!
Aquela frase o marcara. Marcara forte, marcara a fundo. Era o incentivo que ele tinha de ser um bom goleiro. Porém não só um goleiro, aquela frase era a voz saída de um exemplo que Carlos Eduardo seguia e se espelhava. Era o incentivo que ganhara de continuar sendo também um bom aluno, um bom ajudante da família, do bar e das irmãs e de certamente trilhar o caminho do sacerdócio, confirmando o prazer e a vocação que vinha de berço. Mas nunca se esquecendo do sagrado futebolzinho com os amigos.
Não ganhamos aquele campeonato, ficamos em quatro na classificação geral. Oito partidas, três derrotas, três vitórias e dois empates. Um resultado bem diferente do esperado por nós antes dos treinos e do próprio campeonato. Mesmo o nosso time não tendo ganhado nenhum troféu ou medalha pelo 4° lugar, o Traçantes foi o goleiro menos vazado e ganhou um troféu e uma medalha pelo desempenho naquele certame. Todos os aplaudiram de pé na hora da premiação. Os times da oitava e sétima série – dos alunos que tanto perturbaram o Traçantes pelas suas escolhas e características físicas – ladeados na hora da premiação, o cumprimentaram, um por um, como se o nosso goleiro fosse um exemplo a ser seguido. E era. Diferenças esquecidas. Talvez pelo futebol ou pelo exemplo de como o Carlos Eduardo enfrentou aqueles desaforos durante anos.
Tolerância, foco e bom humor. Atitudes simples porém complexas que muitas vezes não são lembradas por alguns no dia-a-dia para com os outros. Não sei se o Traçantes acabou seguindo os projetos ligados à vida religiosa devido ao afastamento inevitável do término de colégio. Mas assim como ele, Vanessa Lima Vidal, 23 anos, deficiente auditiva, Miss Ceará, ficou em segundo lugar no Miss Brasil deste ano. Ela superou diferenças morais e físicas com muito bom humor, teve foco e, sobretudo, tolerância para com aqueles que tentaram perturbá-la durante o caminho. Sejam pequenas ou grandes as diferenças, manter o norte sem desviar a atenção, assim como eles fizeram, é a garantia de melhor resultado e, até hoje, ainda é o melhor tapa na cara dos que um dia duvidaram e zombaram das diferenças e do potencial de alguém.
3 comentários:
Oii Marcos!
Vim te dar uma sugestão de blog pra ler.
Não sei se já leste algum dia uma das ultimas pág das Capricho.
São crônicas do Antõnio Prata.
Gosto muito do jeito e das coisas que ele escreve.
Acho q tem um pouco a ver ctg.
Aí vai: http://blogdoantonioprata.blogspot.com/
Beijos!
Essas três palavras são fortes e dão norte mesmo. Bom humor especialmente porque é através dele que conseguimos ter a tolerância com os invejosos na nossa volta.
Baita texto meu! Jogasse bem com as palavras e com a lição no final.
Abraçooones! :>
Marquinhos!! estou sem paciência para ler a tua postagem, mas passei por aqui e fui a visitante número 2000!hahahhaha
Beijos!!
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