segunda-feira, 3 de março de 2008

Tio João

O Tio João era um cara da noite, um cara boêmio. Não adiantava, toda hora era hora de tomar uma cervejinha, costume herdado das noitadas em de Rio Grande. Só cervejinhas, nada de whiskis. Nem chopes. Bebia, mas tinha limite, sabia a hora de parar. No porta-malas da Scénic sempre havia um isopor ou uma bolsa térmica atroada de latinhas, mais de fardos. Uns dois ou três no mínimo. Inclusive nos jogos do Tubomart. Grandes peleias!

Com o tempo, o Tio João foi se acostumando em dividir aquelas tantas cervejas com os “sobrinhos” que o adotaram como técnico de futebol e como tio postiço. O sentimento de posse foi enfraquecendo e ao final de cada jogo, além da água para renovar o fôlego dos seus atletas, lançava uma latinha de cerveja para cada um. “– Pega aí Guilherme! Segura aí Cabelo!” – surpreendia os guris naqueles lançamentos e ainda chamava a atenção do Rodrigo, o lateral-direita do time:

- Visse só? É desse jeito que tens que fazer com a bola! Vai aprendendo enquanto eu ainda estou por aqui! – e dava aquele cafuné na careca do “Digo”.

Vários campeonatos. Nenhum título, muito menos um artilheiro. O Tubomart era o time do quase, quase na trave, quase no gol. Os jogadores quase caíam de cansados, quase pediam para sair. Mas o Tio João incentivava lá da beira do campo lembrando a geladinha no final do jogo. Para 98% do time, a cervejinha era mais do que um troféu, para o restante, ou melhor dizendo, para dois jogadores a cerveja não era nada, porque não gostavam de beber e faziam questão de sortear a cerveja: eu era um deles.

Acaba o jogo e eu pingava de suor. O melhor para repor as energias era água, uma água bem geladinha. Depois do jogo, ele vinha fazer comentários do nosso rendimento dentro de campo. Era ríspido coletivamente, mas depois colocava a mão em cima do nosso ombro e fazia uma observação individual, quase sempre positiva, mesmo que a gente não jogasse nada e merecesse um sumir no tempo para que não ficássemos muito tempo aos olhos dos adversários.

O Tubomart era uma junção de amigos e colegas do colégio. Tínhamos esse nome devido a um patrocinador que ficava – e ainda está de portas abertas – na esquina da casa do Tio João, em Rio Grande. Mesmo perdendo, nunca fazíamos muito feio. O máximo que chegamos a perder foi por três gols de diferença, uma derrota por 6 a 3 contra o time do São Caetano, na estréia do Praião. Culpa da cerveja. Da danada da cerveja, porque nos outros jogos, o resultado mais comum era de 2 a 1, no máximo um 3 a 1.

Na noite anterior dessa partida, o Tio João havia dado um churrasco em seu apartamento na av. Rio Grande, na Praia do Cassino, para comemorar o início da temporada de verão, férias para todos. Convidou todos os jogadores do time e mais a parentada toda. Muita picanha e entrecot na grelha, salada de tomate na mesa e no isopor, bem, aquelas geladas, estupidamente geladas esperando pelo ataque dos convidados, infelizmente da grande maioria do time.

- Gurizada! Fiquem à vontade, ataquem! – disse o Tio João abrindo os trabalhos daquele churrasco.

O isopor estava cheio e quando chegava pela metade, o Tio João já buscava mais uns fardinhos. Tirava as latinhas do plástico e derrubava mais 12, 24 latinhas acompanhadas por mais gelo para garantir o combustível até altas horas. Os guris se embebedavam. O Tio João achava que antes bebessem em casa do que na rua. Era um tipo de evitar fiascos e possíveis problemas em festas com outras pessoas e até adversários dos outros times.

No final desta noite, eram 18 marmanjões ainda superlotando o apartamento do Tio João. Uns nove alegrinhos, no brilho. Metade do time. Enquanto da outra metade, só se safava dois: eu e o goleiro, o Maurício. O resto? Pelos banheiros ou na área de serviço do apartamento, com as caras enfurnadas em baldes. Sem exagero algum. Foi feio! Ficaram por lá, chamando o Hugo por horas adentro da madrugada. No outro dia, só ressaca. Não havia comprimidos suficientes para curar a dor de cabeça a tempo do jogo.

Eu e o Maurício ficamos cuidando dos amadores enquanto jogávamos videogame, fazendo hora para nossos pais nos buscarem, só imaginando a cena do jogo no dia seguinte. O jogo marcado às 15h, a ressaca não seria curada a tempo, decerto que não. Aos poucos os alegrinhos foram indo embora, somente restando os podres, amigos do Hugo. E o pior: os que iam se recuperando, já estavam com outras latinhas na mão. E não havia quem os convencesse de largá-las. Faziam feio, caiam sentados e não as largavam. Porque bêbado é assim, pode cair desmaiado, mas não solta a bebida nem por decreto.

Fomos embora do apartamento do Tio João, agradecemos o churrasquinho na véspera do jogo e nos mandamos para nossas casas de carona com o pai do Maurício. O Tio João lá no tanque, lavando os espetos e bebericando uma latinha.

- Já vão guris? Não querem mais uma cervejinha? – disse o Tio João, sóbrio sóbrio.
- Sim, são quase 5h e amanhã tem o jogo, né?
- É! Vocês têm que estar bem, estréia no campeonato! Mas eu sei que em vocês dois eu posso confiar!
- Valeu Tio! Amanhã vamos direto, uma hora antes já estaremos lá!
- Muito bem! Assim que eu gosto de ver!
- Boa noite!
– disse eu – Valeu Tiozão! – falou o Maurício, que tinha jeitos malandros de falar.

Descemos pelas escadas a todo pique, em plena madrugada. Chegando à frente do prédio, na calçada, lembrei de avisar o Tio João dos retardatários:

- O Tio! Tio! Ficaram uns quatro aí atirados na sala, podres de bêbado! E o tio, bem tranqüilo, respondeu:

- Amanhã eu os acordo com um balde de água fria e um Engov! E o Maurício, tirando sarro para variar:

- É melhor meia dúzia para cada um!

14h do dia seguinte: lá estava eu e o Maurício de prontidão, correndo de um lado ao outro do campo para aquecer. Ocupamos um espaço atrás dos carros que estavam parados atrás da linha de fundo e comecei a dar uns chutes e o Maurício a defendê-los. Depois de uns três ou quatro, o Tio João nos surpreendia com o carro lotado, transbordando pelos vidros com quase todos os jogadores do time. E mais atrás o Uno Mille com o restante. Ele provavelmente havia jogado água gelada para acordá-los.

Desceram todos do carro, em silêncio absoluto. Cumprimentaram-nos com um balançar de cabeças. Todos fardados com a camiseta do time, sem filas indianas, mas todos silenciosos. Mais quietos de quando cantávamos o hino nacional na semana da pátria no colégio, em frente a irmã diretora. Algo havia acontecido. Talvez um sermão ou uma lição bem dada pelo Tio João ou pela Tia Norma, a sua esposa.

Início de jogo. O fôlego já havia acabado, exceto de quem bebeu pouco ou não havia bebido nada. O Maurício se esforçava aos litros de suor para defender a bolas que iam a gol. O juiz apita duas vezes. Final do primeiro tempo: 0 a 0, por milagre. Correr pelos outros guris, durante 45 minutos, é dose. Nem o Ronaldinho Gaúcho em boa forma conseguiria. No intervalo, o Tio João só balançou a cabeça e disse para agüentarmos. “Mas agüentarmos como?” – interrompi. Aqueles bundões só queriam saber de festa e de beber sem limite. Dei um sermão. Não era o capitão nem nada, mas falei e todos me ouviram, com as cabeças baixas e me detestando pelas minhas palavras. Paciência, eu queria ganhar.

Segundo tempo: 6 a 3. Passou voando, sem tempo para narrar e dar crédito aos gols de Leonardo, Zanotta e um meu. Times se cumprimentando, cumprimentando o juizão e ali havia acontecido o crime, a nossa primeira derrota por um placar elástico, por mais de dois gols, contra o São Caetano. O Tio João chamara todo mundo depois do jogo, balançando a cabeça e ordenou:

- Todos para a praia! Agora!

E não falou mais nada. Todos obedeceram. Difícil de compreender já que o Tio João sempre estava de bom humor, largando uma piadinha mesmo que perdêssemos ou oferecendo uma gelada para a gurizada. Mal sabiam do que lhes seria ordenado.

Na reta da Iemanjá, todos se perguntavam interiormente o que iriam fazer. O técnico, sim o técnico, porque a figura Tio havia sido abandonada na noite anterior.

– Prontos? Alonguem! Você irão correr até o terminal. Só poderão dar uma pausa no riacho. Não quero que parem, exceto se sentirem faltar de ar mortal ou que desmaiem de cansaço, estão ouvido?
Todos responderam com o início da corrida, quando o técnico João Lemos interromperia:

- Maurício, Marcos, Leonardo e Zanotta, vocês ficam aqui comigo esperando eles correrem, só alonguem e pronto. Nós vamos de carro atrás para conferir se eles não vão pedir carona! – ordenou a figura de João, o técnico. O carinha lá de cima havia jogado um balde de alegria na gente. Afinal, não tínhamos bebido nada ou quase nada e ainda havíamos feito gols. Descanso merecido.

Era só a primeira partida, mas dali os guris tiraram uma lição. Quatro de dezoito jogadores estavam em perfeitas condições de jogo, sem ressacas ou dores no corpo. Enquanto, os outros marmanjões com 16 para 17 anos bebendo sem limite e sem fôlego, mesmo sendo avisados para pararem na noite anterior. O Tio João havia ensinado uma lição. Uma lição não só para nossas juventudes, mas para o longo de nossas vidas. Era preciso abrir mão de algumas coisas para termos outras. Abrir mão da cervejinha ou bebê-la com moderação para ter fôlego de jogar o sagrado futebol. Tudo para ter-se limite não somente dentro das quatro linhas, mas também no dia-a-dia. O Tio João sempre foi um cara sóbrio, além de nosso tio postiço e técnico, um bom professor. O nosso professor.

3 comentários:

Anônimo disse...

Agora sim li o texto.. :D

Eu gostei!

Ahh como ele é um menino exemplo.. hehehe

Pelo menos escapou de correr :) uihaiuhaiuaha

Mas q uma cervejinha é boa... ahhh se é :)
ahiauhaiuhaa

beijos marquitchosss
;@

Anônimo disse...

gostei!
bobão!
eu venho aqui tooodos os dias!
leio, só que a minha cabeça to em off...
;~

gostei da cervejinha e nem vo comenta!
;x


beijo kinhos :)

Anônimo disse...

Ahhhhhh, mas coitadinha da cervejinha!! ahiuaHOIUuiaHUIAH
Me perdoa Kito, mas a cervejinha é mais sagrada que o futebol :P
Adorei o 'Tio João', esse aí eu queria conhecer :D
E vai fazer a tua pose de menino bonzinho pra outras pessoas, eu sei que no fundo tu é um fanfarrão! :D
Beijooo Markito!
=**