sábado, 1 de março de 2008

Dr. Carneiro

6h30 da manhã e o despertador anunciava mais um dia de trabalho para Carlinhos. Um banho rápido, café preto sem açúcar e um beijo na nega véia. Pontualmente, às 7h ele já estava estacionando o táxi no ponto da rua Benjamin Constant e saindo em seguida para atender a primeira chamada. Não eram nem 8h da manhã e ele já havia atendido doze chamadas em menos de uma hora. Era uma chamada ali, outra lá e o dinheiro entrando fácil. Era realmente um dia diferente, talvez um sinal, talvez não.

Carlinhos era formado em Educação Física pela UFPel há três anos. Em seguida do término da faculdade casou-se com Ana Cláudia. Uma futura médica. Futura linda médica: uma morena caucasiana de pernas longas e olhos verdes acinzentados, daquelas que fazem os velhinhos na praça perderem a concentração no jogo de damas. Ela era secretária-estagiária de um pediatra, o Dr. Carneiro. Depois do casamento, Carlinhos resolveu arranjar também uma graninha enquanto não conseguia um bom emprego. Resolveu então virar taxista, um excelente motorista.

Por volta do meio-dia, Carlinhos já havia atendido 42 chamadas. Sim, 42. E o mais estranho: a grande maioria das chamadas tinha como destino bancos do centro de Rio Grande e o consultório médico do Dr. Carneiro, onde Ana Cláudia trabalhava. Todas as pessoas que embarcavam no carro eram pessoas diferentes, mas suspeitas, não puxavam assunto no máximo davam bom dia e perguntavam quanto havia saído a corrida. “Tudo bem”pensava ele. Afinal, todas as corridas estavam sendo pagas e o dinheiro entrando, o que era mais importante para ele pagar as contas da casa no apavorante dia cinco do próximo mês.

Depois de deixar mais um passageiro no consultório do Dr. Carneiro, Carlinhos esperou pela saída da esposa, já que era hora do almoço. 12h30 conforme sempre faziam todos os dias par almoçarem juntos. 12h45 e nada de Ana Cláudia. Carlinhos pegou o celular para ligar e neste exato momento viu, entre as frestas da veneziana da janela frontal do consultório, Ana Cláudia falando ao telefone e fazendo anotações. Desistira de ligar, preferiu esperar. Ana sairia em seguida, com semblante tenso, de preocupada. Embarcaria no carro, daria um beijo rápido de oi ao marido e não falaria nenhuma palavra. Estranho, ela que tanto gostava de conversar e contar histórias das criancinhas do consultório do Dr. Carneiro. Carlinhos resolveu questionar:

- Aconteceu alguma coisa no consultório, Ana? Estás tão quieta hoje!
- Nada não, amor...
- Tens certeza? Estás parecendo um pouco nervosa...
- Vamos almoçar, estou bem sim...
- Tudo bem, tu é que quem sabes... Vamos ao Pimenta Americana?
- Aham...

Alguma coisa não estava nos conformes. Ana nunca havia mudado repentinamente o seu comportamento. Carlinhos era um pouco ciumento, mas resolveu tolerar e esperar que alguma outra coisa acontecesse para questioná-la. Não tinham segredos, prezavam, sobretudo, a amizade e o jogo aberto.

Chegando ao Pimenta Americana, escolheram uma mesa, serviram-se. Carlinhos com seu prato de quase R$ 12 reais e Ana com um prato floresta, repleto de verduras e legumes: R$ 4,54 reais. Mulheres têm mania de regime, mas adotam uma postura muito boa quanto à alimentação, coisa que os homens nem sempre conseguem. Entre garfadas e silêncio na mesa 43, o garçom os interromperia sobre o que gostariam de beber.

- Bom dia! O que querem beber?
- Eu quero uma Coca bem geladinha
– respondeu Carlinhos.
- Com limão e gelo, senhor?
- Isso, com bastante gelo!
- E para a senhora? Depois de algum segundos:
- O mesmo que o dele.

O garçom saiu a passos largos dali pela resposta sisuda de Ana. Foi aí então a oportunidade de Carlinhos questioná-la para saber o porquê daquele comportamento:

- Amor, abre o jogo! O que aconteceu?
- Nada Carlinhos...
- Quem nada é peixe, sabia? Não me esconde, pode falar!
- É tpm, tu sabes que eu fico assim...
- O teu tpm foi semana passada, eu vi a cartela do teu harmonet!
- É, desculpa... é que... coisas estranhas estão acontecendo lá no consultório.
- Por acaso são pessoas aleatórias visitando o Dr. Carneiro?
- Como que sabes disso?
- Hoje pela manhã fiz mais de 40 chamadas e a grande maioria tinha como destino o consultório e vários bancos no centro da cidade.
- E por que chamariam só a ti?
- Não sei! Sei que o dinheiro entrou bastante hoje! Cinco, seis vezes mais do que o normal!
- Amor, promete que guarda um segredo?
- Claro!
- O Dr. Carneiro anda transferindo dinheiro para o exterior!
- E como descobrisses isso?
- Hoje quando chegasses, uma mulher ligou para lá na hora que eu estava saindo, com um sotaque americano pedindo para falar com o Dr. Carneiro. Repassei a ligação, mas esqueci de apertar o mute... escutei tudo! Falcatruas. São mais de cinco milhões de reais de um esquema de notas ficais de remédios e consultas falsas com planos de saúde de outras pessoas. Ele vai fechar o consultório e fugir em duas semanas para Nova York!
- Nossa! Quer dizer então que nós fazemos parte de uma quadrilha organizada! Somos cúmplices disso tudo, Ana! Vamos denunciar antes que...
- Fica quieto! Eu acho que posso fazer uma coisa pela gente...
- Tu não estás pensando em ter uma participação nisso, não?
- É... não, mas....
- Mas nada! Nem vem com essa...
- Não são cinco mil reais, são cinco milhões de reais! Milhões!
- Ana, Ana, Ana!
- Vamos comer e conversamos no carro, viu?
- Está bem...
- E hoje, é por minha conta, viu Carlinhos?

Ana tinha planos mirabolantes. Nunca havia sido uma corrupta. Nem roubado algum iogurte das prateleiras de supermercado quando criança. Carlinhos pior ainda. Sempre foi um apaixonado pelos esportes, principalmente pelo futebol. Não roubava nem quando tocava a mão na bola. Tudo estava começando a mudar. Ambos queriam ter empregos melhores, crescerem em suas carreiras. Ana tinha em mãos a oportunidade, suja, mas chance de virar de vida junto com o marido. Sumirem do mapa e gozarem de luxos e boa vida.

- Amor, por favor! Olha bem o que tu vais fazer!
- Deixa comigo! Mulheres sempre sabem o que fazer, ainda mais em relação aos homens.
- O Dr. Carneiro sempre foi bom contigo! Faz de conta que não sabe de nada e pula fora o quanto antes, negrinha!
- Eu já sei o que vou fazer...
- E eu posso saber? Sou teu marido...
- Te ligo em seguida que fizer, ok?
- Juízo! Muito juízo, hein?
- Beijinho...
- Beijo!

E lá foi Ana, determinada a tirar proveito da situação. Dr. Carneiro nem havia saído do consultório durante o almoço. Naquele dia, recebeu apenas três crianças, consultas rápidas, coisas de machucado de joelho e resfriados. Enquanto mexia em papeladas em cima de sua mesa procurando por algum dado, Ana, batera em sua porta:

- Pode entrar! – disse o Dr. Carneiro.
- Oi Dr. Carneiro, não saiu para almoçar?
- Não querida, fiquei arrumando umas papeladas!
- O movimento está fraco hoje, não?
- Pois é, preferi assim. Estou cheio de coisas para acertar!
- Hmm! E que coisas são essas, Carneiro?
- Não eras assim Ana, o que está acontecendo? Neste momento Ana insinuava-se se espreguiçando e fazendo uma expressão deveras sedutora. Respondeu fazendo biquinho francês:
- Nada, eu só queria também poder participar disso. Afinal, eu sei de tudo!
- Tudo o quê, Ana? Do que sabes?
- Simplesmente tudo. Tudo. Tudo.
- Quanto queres para ficar calada? Isso não pode sair daqui!
- Pagas o que eu pedir? O meu preço é alto...
- Sempre fui tão bom para ti, desde o início do teu estágio e tu me tratas assim?
- As pessoas mudam Dr. Carneiro... O senhor mudou. E muito!
- Fala quanto, eu pago...
- Eu sei que o senhor vai fugir em duas semanas para Nova York. Então eu quero este consultório de Rio Grande, o outro da Praia do Cassino e...
- E...?
- Quero que compres cinco carros populares para o meu marido manter uma frota de táxis aqui na cidade.
- Fechado, mais do que fechado!
- Viu? Eu não quero dinheiro, eu quero bem menos do que tu ganharás com as falcatruas de anos...
- Vamos até o cartório agora mesmo resolver isso! Chama um táxi para não dar muito na vista que estou saindo do consultório contigo...

Ana bateu a porta da sala do Dr. Carneiro e correu para o telefone para chamar um táxi. Ligou para a central da rua Benjamin Constant e pediu o carro 21, o carro do marido:

- Central de Táxi Benjamin, boa tarde!
- Por favor, podes mandar o carro 21 aqui na rua Ubirajara Maciel, 354, centro?
- Claro, qual seu nome?
- Ana Cláudia. E a atendente falava em segundo plano chamando o táxi 21:

- Prefixo 21, rua Ubirajara Maciel, 354, centro! Prefixo 21, rua Ubirajara Maciel, 354, centro! Ana Cláudia, Ana Cláudia.

- Senhora, o táxi chegará em breve, ok? Tenha uma boa tarde.


Quando Carlinhos recebeu o recado da atendente da central, percebeu que alguma coisa estava cheirando mal. Lembrara do que disse a esposa na hora do almoço, que ligaria quando tivesse resolvido a situação. Dirigiu-se ao consultório e esperou que Ana aparecesse. Para sua surpresa não havia aparecido apenas Ana, mas também o Dr. Carneiro. Enquanto Ana fechava a porta do consultório, o Dr. Carneiro esperava com dezenas de papéis debaixo do braço, já dentro do carro. Mudo, mudo de verdade. Ana entrara no carro no banco da frente e apenas ordenou seu marido:

- Segue para o cartório local mais próximo, rápido.

Dr. Carneiro e Ana desceram do carro. Ana ordenou que Carlinhos esperasse enquanto faziam os acertos. Minutos depois, papéis assinados, alvarás concedidos e uma mala cheia de dinheiro para a compra dos carros na mão de Ana. Pronto. A futura médica havia ganhado um consultório. Nem havia acabado a faculdade ainda, mas teria uma parte do seu futuro garantido. Carlinhos estava morrendo de curiosidade sobre o que Ana Cláudia havia proposto ao Dr. Carneiro. Depois de minutos, voltaram ao consultório e... surpresa! Lá estava a polícia cercando a área para dar o flagrante no Dr. Carneiro:

- Mãos na cabeça, sai do carro, devagar, devagar! O senhor tem o direito de permanecer calado e contatar um advogado. Tudo o que você disser poderá ser usado contra você...

O Dr. Carneiro sairia aos poucos, tentando tapar o seu rosto com os braços para que ninguém visse sua identidade. Havia sido pego com a mão na botija, duas semanas antes da grande fuga com cinco milhões no bolso rumando para Nova York. Mas quem havia chamado a polícia? Telefones grampeados? Nada disso. Carlinhos, o grande professor e temporário taxista Carlinhos! Mal sabia ele que o seu futuro estava até então garantindo. Arriscou-se, arriscou a própria mulher – assim como ela havia também o arriscado na confusão – e sairia ileso, sem nenhum envolvimento.

Ana Cláudia e Carlinhos, na verdade, Antônio Carlos – nome de zagueiro de futebol – teriam um futuro garantindo ou quem sabe mais tranqüilo. Depois de um dia com grandes retornos no táxi, Carlinhos ganhara de brinde mais cinco carros, que mais tarde venderia para montar uma academia de ginástica. Enquanto que, o Dr. Carneiro, de tanto não cuidar criancinhas e preocupar-se apenas com as falcatruas acabou sendo desmascarado por um casal que nunca havia antes sido corrupto. Sempre existe uma primeira vez. O feitiço virou-se contra o feiticeiro. Na verdade, o remédio teve efeito contrário, alérgico. Afinal de contas, o Dr. Carneiro é brasileiro e, aqui em Rio Grande, mais do que nunca, o peixe morre literalmente pela boca, no caso dele, pela boca ao telefone.

3 comentários:

Anônimo disse...

Bahhh, mas esse Dr. Carneiro é um médico comum, pois hoje em dia o que os médicos mais querem é dinheiro, status e estão pouco se importando com a saúde das pessoas.

Bom, e como dizem, este é o verdadeiro "jeitinho brasileiro" de resolver as coisas... Mas a Ana quis tirar proveito da situação, fiquei com um pouco de medo que ela se ferrasse.

Bom era isso, senhor pé de lodo :)

beijinhosss e saudadesss
;@

Anônimo disse...

Bah, que história mirabolante! ahaiUOOAhiuHOUAhua
Ahhh mas juro que fiquei com peninha do Dr. Carneiro, ele parecia ser um velhinho tão fofinho xD
Beijooo Kito!
=***

Jennifer Azambuja de Morais disse...

Não é questão de primeira vez, mas questão de querer um futuro melhor por ver injustiças..tipo ela não concordava não ter tudo o que ele tinha sendo honesta e ele não...é realmente mulher sempre sabe o que fazer, apesar de ter achado arriscado o que ela fez...